Kleber Luiz Zanchim 11/03/2009
Segundo semestre de 2008, sala de pós-graduação em direito empresarial. Disse um aluno: "Mas professor, o sr. desvirtuou a discussão! Está questionando a hipoteca com base em argumentos econômicos! Parece ignorar a tradição jurídica dessa garantia. Trata-se de direito real cuja firmeza é inquestionável. " O professor ponderou: "Meu caro, saiba que muita gente acompanha seu ponto de vista. Mas me diga: a hipoteca foi uma garantia eficaz nos Estados Unidos?"
A partir daí começou um debate sobre a crise, o direito e a economia. O aluno foi categórico ao defender a eficácia das hipotecas. Afinal, os bancos americanos estão executando a garantia que, juridicamente, tem funcionado sem falhas. Diante disso, o professor indagou se não havia mesmo qualquer relação entre a crise e o pensamento jurídico tradicional sobre o que seja a hipoteca. A resposta foi firme: "Foram as próprias falhas da economia, e não do direito, que causaram a crise. Por isso, o sr. não pode questionar a hipoteca com base em raciocínio econômico."
Para testar a convicção do aluno, o professor inquiriu se a hipoteca não tem, na essência, um forte conteúdo econômico, uma vez que serve para viabilizar ou baratear o crédito ao reforçar a expectativa do credor de receber os recursos emprestados. "Sim, e para isso a hipoteca serviu. Basta ver o volume de crédito despejado na economia dos Estados Unidos antes da crise. Significa que os credores confiaram nessa garantia", respondeu o aluno.
A referência à confiança chamou a atenção do professor. Já é clichê que a crise decorreu da quebra de confiança nos mercados. O que antes parecia seguro, agora dá medo. Por isso, perguntou se hoje o aluno emprestaria seu próprio dinheiro contra garantia de hipoteca. Direto, ele disse: "Claro. Sei que poderei executá-la se o devedor não pagar. Venderei o imóvel hipotecado e recuperarei meu dinheiro." Na sequência o professor rebateu: "O imóvel que você recebeu em hipoteca será mesmo vendido? O crédito está escasso. As pessoas estão com receio de imobilizar capital ou de assumir obrigações de longo prazo..." O aluno ficou desconfortável. Comentou que o questionamento não tem nada a ver com a hipoteca. O problema seria a baixa liquidez do mercado. A garantia hipotecária continuaria perfeita. Então o professor, para introduzir de vez a reflexão econômica na conversa, desafiou: "Você recomendaria a um cliente o uso da hipoteca no contexto econômico atual?" O aluno respondeu que sim, recebendo em seguida outra pergunta: "E você vincularia o recebimento de seus honorários ao sucesso da garantia?" Um pouco desnorteado, o aluno disse que era advogado e não sócio do cliente, não fazendo sentido que corresse o risco do negócio dele. O professor continuou: "Está correto. Mas se a hipoteca fosse realmente uma garantia eficaz, seu risco seria muito baixo e poderia valer a pena assumi-lo, certo?"
O silêncio foi absoluto, abrindo caminho para o professor alinhar o debate: "Meu caro, essa conversa mostra que precisamos enxergar as figuras jurídicas por múltiplos pontos de vista. Se o imóvel hipotecado não tem liquidez, de que serve a hipoteca? Para quem concede crédito - e esse seria o seu caso se vinculasse seus honorários ao resultado da execução hipotecária - ter garantia não significa apenas a possibilidade de obter uma decisão favorável de um juiz. O credor quer também condições de, em concreto, recuperar o dinheiro que emprestou." Recobrando o fôlego, o aluno reagiu, acusando o professor de exigir que ele pensasse como economista. O professor esclareceu: "Não se trata de pensar como economista. Trata-se de pensar como profissional que coopera com o cliente. Se sua solução jurídica para resguardá-lo for a hipoteca, é altamente provável que ele questione sobre a liquidez da garantia. Se você responder que isso é problema dele... Bom, vamos voltar ao exercício da aula."
A conversa mostra que existe mesmo um embate entre racionalidade jurídica e racionalidade econômica. A crise evidencia o conflito: a hipoteca funcionou juridicamente bem, mas não protegeu o crédito como se esperava. Seria possível enxergar no contexto atual uma oportunidade para aliviar a tensão entre direito e economia? Talvez, desde que não se procure enxertar uma ciência na outra.
Tomando o caso da hipoteca, pode-se extrair com mais cuidado o conteúdo econômico que sempre lhe foi intrínseco ao invés de se lhe inserirem modismos interpretativos ao gosto do mercado. Há nisso um caminho para avaliar melhor o risco da garantia - com análise de sua liquidez, por exemplo - sem ignorar a experiência jurídica de que ela dispõe. Reconhece-se a força da hipoteca como um importante direito real, mas se estuda, no caso concreto, a sua efetiva capacidade de satisfazer o credor, transformando imóvel em dinheiro.
Para ampliarmos a cooperação entre raciocínio jurídico e raciocínio econômico falta, todavia, quebrar preconceitos na formação de pessoas. Se é verdade que as racionalidades são distintas, também é fato que não são inimigas. Por isso seria saudável que os professores de direito, economia, administração e outras áreas correlatas criassem nos alunos o interesse de ir do jurídico ao econômico e vice-versa. Quem sabe assim tenhamos, no futuro, mais ferramentas teóricas e práticas para evitar ou enfrentar novas crises.
Kleber Luiz Zanchim é professor do Ibmec Direito, do GVLaw da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, da Fundação Instituto de Administração (FIA) de São Paulo e sócio do escritório Marcelo Neves Advogados e Consultores Jurídicos
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